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Quem tem padrinho não morre pagão

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“Minha mãe gosta mesmo é de uma lavação.” O que mais a filha enxergava próximo dela era água. Uma matéria que, para quem nasceu antes dos anos 80, nos era líquida, certa e sem culpa
Por Ana Cristina D’Angelo*

Minha mãe é das que guardam as provas de Matemática da 5ª série em que fui bem ou beirei o zero.  As minhas e as da minha irmã, aconchegadas naquelas caixas-arquivo de papelão, na parte mais alta do armário, o que significa que toda essa papelada é revista uma vez a cada cinco anos, certamente quando estamos há um tempo lhe devendo uma visita.

E foi numa dessas ausências nossas, substituídas por boletins e carteirinhas do colégio estadual, que minha mãe encontrou a redação em que pela primeira vez minha irmã a descrevia, talvez na 3ª ou 4ª série.  “Minha mãe gosta mesmo é de uma lavação.” Na cabeça dos 7 anos da Mônica, lavação era a mãe molhando as plantas do jardim, jogando água na terra seca do quintal quando ficava muito tempo sem chover, lavando a louça do almoço e as outras ocupações domésticas que essa mãe aos 40 anos revezava com o trabalho intelectual.  O que mais a filha enxergava próximo dela era água. Uma matéria que, para quem nasceu antes dos anos 80, nos era líquida, certa e sem culpa. Suspeito que, nos rituais aquáticos, dona Cecília era menos afazeres e mais fuga de obrigações.

Nesta mesma cidade, a pergunta frequente era se o bebê tinha chorado muito ou pouco na hora do batismo. Sinal de bom ou mau cristão? Dependia também da disposição do padre em derramar muita água na cabeça do menino, o que rendia comentários para uma semana.  Mais tarde, um banho demorado era apelidado de banho Cleópatra, sabe-se lá o que a meninada pensava desse termo inventado no interior católico mineiro.  Mas o certo é que a água era assim.

Mais tarde, meu pai me deu um vidrinho de sal de fruta fechado com fita crepe e recomendou jogar o líquido em todos os cômodos da minha casa na capital.  Era a água que saía do túmulo de um padre santo. A mesma depositada numa pia na entrada da igreja onde os fiéis molhavam a ponta do dedo e esparramavam pelo rosto.

A fé do meu pai na água era de nascença. Meu avô adivinhava a chegada da chuva pela virada nas folhas das laranjeiras que plantou. Meu pai levou essas laranjeiras e árvores da fazenda para a cidade onde criou família, mas alguns vizinhos reclamam até hoje das folhas sujando a calçada e algumas vezes ele acaba errando o prognóstico da chuva.

Dia de lavar a caixa-d’água era um deus-nos-acuda.  Um mau humor geral se instalava na casa.  Banhos rápidos, comida boba sem variedades, o povo calado e minha mãe com a cara torcida o dia inteiro.  Depois a água chegava e tudo voltava ao seu curso normal na Rua Agostinho Azevedo.  Se chovia muito, além de encher a caixa-d’água, a população corria para ver a praia.  A praia é o Córrego do Lenheiro, que corta a cidade e inunda só as casas da periferia.  Quem não foi inundado corre até a beira da praia, debaixo da sombrinha, para ver o caldo grosso e marrom chegando perto da ponte e arrastando tudo.

A água pagã e sagrada de São João del Rei é a mesma que lava as escadarias do Bonfim, coisa que, de obrigação religiosa, passou a festa, tendência nossa brasileira. Este ano se cumpriu a 255ª lavação, reunindo alicatólicos, espíritas, seguidores do candomblé, umbanda, ricos e pobres na Bahia.  A água rompeu a hierarquia e sobrou anunciar e celebrar. Sem ela, também não sei o que seria dos casamentos na aldeia dos Tapirapé, no norte de Mato Grosso.

No final da tarde, o cacique sai abraçado com sua mulher e com toalhas nos ombros.  O sol está indo embora e deixa morna a água do riacho.  É hora do banho-namoro naquelas bandas.  O riacho fica atrás das ocas e os casais vão andando sem pressa para a higiene diária.  É também no riacho que as panelas são areadas e os meninos brincam.

Em São Félix do Araguaia, onde um lado é Mato Grosso e o outro é Tocantins, o rio serve para pesca, transporte, lazer, alimentação. Mas o rio sustenta ainda o Flutuante, bar-restaurante no qual se come o melhor peixe assado da cidade. Do Flutuante, os frequentadores lançam suas varas ao Rio Araguaia e depois devolvem tudo que é pescado. Sem o Flutuante, também não sei não.

*Jornalista

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